IV - NO RESCALDO DOS INCÊNDIOS...

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Uma reflexão despretensiosa, mas, talvez, pertinente…

(Antes de ler o que agora se segue, convém visitar, neste site, três artigos anteriores, publicados, respetivamente, a 30 de junho, a 03 de agosto e a 14 de agosto).

3 - Será que tudo se justifica com uma determinada conceção do bem-estar e do progresso?

Vejamos! Andei fora desta minha querida terra durante mais de 50 anos, em Portugal continental e no estrangeiro. Mas, de vez em quando, vinha até cá em serviço ou de visita a alguns dos poucos familiares que por aqui ficaram, imunes à voragem migratória dos anos 50, 60 e 70, ou, então, que para cá tinham voltado, sentindo as “saudades da terra”, de onde tinham saído algumas dezenas de anos antes! Por isso, por um motivo ou por outro, mesmo sem ter por cá a família mais próxima, tive ocasião de acompanhar a marcha imparável da nossa terra, umas vezes, admirando o progresso, visível em tantos aspetos, e, outras, lamentando certos rumos que, não raro, conduzem a situações irreparáveis.

Na verdade, grandes e úteis obras se fizeram nesta nossa terra, ao longo dos últimos 40 anos. Até confesso alguma admiração por quem as idealizou, programou e executou, embora pense que deveria ter sido gizado um plano de financiamento capaz de nos deixar mais tranquilos quanto ao presente e quanto ao próximo futuro. Por isso, pagamos cara a fatura, sobretudo a partir do momento em que nos foi aplicado um PAEF, em dupla dose, a partir de 2012.

Para além disso, no pacote das “obras”, mesmo nas que podemos considerar como boas e necessárias (nem me vou pronunciar sobre algumas de utilidade muito discutível), não raro se escondem efeitos perversos, que, para ficar no âmbito desta reflexão, podem considerar-se atentados à Mãe-Natureza. Exemplos?! Apenas alguns, os que, do meu ponto de vista e dentro das minhas vivências, considero mais sintomáticos.

Então, que dizer da “canalização/reabilitação” das nossas ribeiras e dos nossos ribeiros, mesmo se com o louvável intuito de os domesticar e conseguir maior segurança?! É verdade que, estreitando os cursos de água, se aumentou o espaço para a expansão de vilas e cidades ou para o alargamento de estradas, caminhos e propriedades, mas também se deu azo a uma construção, um tanto “selvagem”, de casas, lojas, hotéis, marinas e até praias com areias “exógenas”, que podem provocar desequilíbrios ambientais e atentados à paisagem.
Deparei com essa realidade, quando, há anos, visitei a Madeira e vi o que se fez, por exemplo, no último trecho da Ribeira de Santa Cruz, um lugar que, durante largos anos, vi cheio de pedregulhos, aí depositados pela aluvião de novembro de 1956. À primeira vista, até parece ter sido uma boa solução, mas que, em cima desse “mar de pedras”, se tenham construído a “Escola Secundária de Santa Cruz” e outros prédios, obrigando a Ribeira a percorrer um apertado leito, isso já me deixa muito preocupado. E se a Mãe-Natureza despertar e vier reivindicar território que já foi seu?!...

Há mais casos semelhantes a este. Basta percorrer o nosso litoral para topar com eles, embora só se dê conta disso, quem, já com alguma idade, sabe e conhece a realidade anterior. Ora bem, casas de habitação, à beirinha ou em cima dos cursos de água, disso não me reza a memória. E posso garantir que não havia casas nem morava ninguém junto ao ribeiro que passava perto da minha casa, embora dele se resgatassem terrenos, como a nossa “Laja”, para acrescentar mais um espaço de onde retirar sustento para a família. E, quando aconteciam aluviões, como esse de 1956, “cramava-se” a perda, mas sabia-se que, de vez em quando, apareceria a Mãe-Natureza, a reivindicar o que lhe pertence.

Contra o progresso? Não, de modo nenhum, ou não tivesse eu vivido noutras paragens e vários anos no estrangeiro, ao contacto com povos com maior desenvolvimento, mas onde, em geral, também há maior respeito pela Natureza. Mas, com isto, não quero afirmar que, esses lados estejam imunes a desastres, mais ou menos naturais. Mas, aí, o discurso iria alargar-se à consideração de outros fenómenos, entre outros, a poluição e o famigerado buraco do ozono, onde, de novo, a (ir)responsabilidade humana seria chamada a contas.

Mas, continuando, que dizer da invasão de plantas e árvores exógenas que infestam as nossas florestas e que, se nos descuidarmos, penetram até nas áreas protegidas da Laurissilva, danificando-as de modo irremediável? E se de eucaliptos se trata, não haverá interesses escondidos, dada a facilidade com que crescem e ficam prontos para a indústria? Para além disso, o eucalipto não só “chupa” os terrenos e arde facilmente, mas também resiste ao fogo, regenerando-se com uma rapidez impressionante. É prova disso o que verificamos com eucaliptos que arderam em agosto passado e que já estão novamente viçosos, quase diria, prontos para novas “queimadas”.
Tinha acabado de escrever isto, quando interrompi para o almoço e, na pausa que se seguiu, deparei com o “Expresso” (Edição de 1 de julho de 2017), que tinha sido trazido por uma colega, pouco antes… E qual não foi o meu espanto, ao ler, na página 18, este título: “O lóbi do eucalipto é dos mais poderosos”, seguido de um subtítulo, ainda mais surpreendente: “As poucas tentativas de legislar sobre o lóbi têm tido pouco sucesso” (Entrevista de Carolina Alves a Susana Coroado). É verdade que, por vezes, os títulos são “bombásticos”, porque pretendem provocar os leitores, mas, dispensando-me de comentários, julgo que será de todo conveniente refletir sobre o assunto, pelo que remeto os eventuais leitores para a referida entrevista, a fim de tirarem as suas conclusões.
Mesmo assim, não vou largar o tema, porque me chegam à memória (novamente, coisas da infância!) os dois terrenos de eucaliptos que o meu pai possuía nas proximidades da Lagoa, no sítio do Poiso, freguesia do Santo da Serra. Quando a família ia trabalhar para lá, eu e Isabelinha, a minha irmã mais nova, brincávamos despreocupados no fundo da Lagoa, então vazia e seca, enquanto o meu pai, a minha mãe, duas irmãs mais velhas e mais algum assalariado “limpavam” cuidadosamente esses terrenos. Igual tratamento se dava aos terrenos de pinheiros, que possuíamos noutros lados, aproveitando-se, num e noutro caso, o mato, para as terras de cultivo e para a cama do gado; a lenha, para a lareira e para o forno de casa, bem como para “venda”, sobretudo na cidade; as varas, para estacar o feijão e para os “corredores” e “latadas” das nossas videiras; as madeiras, quando se cortavam os pinheiros e os eucaliptos que tinham “engrossado”, para venda, sobretudo às indústrias do Funchal… E, disto, percebia o meu pai, experimentado que era nas terras que cavava, preparava e cuidava para as colheitas (batata, “semilha”, feijão, couves, cebolas, trigo, milho, cana de açúcar, bananas, vinhas…); no tratamento de duas vacas, em palheiro; no “ajuste”, em sociedade com o Sr. Caetano, de terrenos de pinheiros e eucaliptos, cujas lenhas e madeiras negociava, depois, junto de lojas, empresas e indústrias, sobretudo no Funchal.
Lembro-me ainda de que, na hora da limpeza dos terrenos, se apareciam raízes ou plantinhas de acácia, eram de imediato arrancadas, não fossem elas crescer e impedir o desenvolvimento das plantas e árvores consideradas de interesse. Sublinho que todos estes cuidados com as matas, para além dos benefícios já apontados em termos de agricultura, criação de gado, uso doméstico e vendas, eram o melhor e o maior obstáculo aos incêndios… Em boa verdade, não me lembro de que, alguma vez, tivesse acontecido qualquer incêndio nas matas do meu pai ou nas dos parentes e vizinhos, porque toda a gente cuidava do que era seu, com igual solicitude! Refiro-me ao que observei e vivi, sobretudo nos anos 50 e 60, cuja memória ainda conservo.
E, hoje, que diferença! Quantos terrenos abandonados, cheios de mato facilmente inflamável, não só nas matas mas até em espaços urbanos, entre casas e vivendas, para não falar dos quintais de casas desabitadas, algumas já em avançado estado de degradação! Quem deve intervir nestas situações junto dos proprietários: as Juntas de Freguesia, as Câmaras Municipais, o Governo Regional ou Nacional? E, se a(s) propriedade(s) em questão, pertence(m) aos Municípios, ao Estado, à Região, quem obriga quem, ou quem se atreve a exigir dessas entidades públicas o que elas pretendem exigir, com força de Lei e com multas pesadas, aos privados? Não deixa de ser curioso que há um caso destes, por onde entraram as chamas que fizeram muitos estragos na Escola da APEL! E não têm faltado apelos, mediante ofícios assinados em conjunto com duas Escolas contíguas, para que se resolvam algumas situações deixadas pelos incêndios de agosto de 2016, sem que se vislumbre, até à data, a preocupação de quem de direito (mas, de quem?!) para as remediar. Entretanto, numa repartição pública, aonde fui indagar sobre o(s) dono(s) dessa(s) propriedade(s), a diligência não só não resultou, mas até fui questionado sobre se tinha procuração para o efeito! “Mas… procuração de quem?”, perguntei, “para que eu a possa solicitar?!...”. Ora, ora, se eu soubesse…, por que carga de água iria investigar?!...
Por isso, não admira que haja “privados” que não sintam a responsabilidade de “cuidar” do que é seu, porque ou não percebem ou não querem perceber que, ao fazê-lo, cuidam da “casa comum” e estão a respeitar o que lhes pertence e o que pertence aos outros. E, se já não bastasse essa falta de sensibilidade e cidadania, nem nos resta a hipótese de chamar a atenção de quem quer que seja e, menos ainda, de exigir penalização aos “infratores” da manifesta incúria, pelo simples facto de não se conseguir chegar ao(s) proprietário(s).
E se o bom exemplo não vier de cima, dos que nos governam, vamos esperar o quê dos que são governados, para mais em tempos de crise, quando parece que o que mais conta é o “salve-se quem puder”?!...
De qualquer modo, não consigo deixar de concluir que não há progresso, por mais necessário e urgente, que justifique todos os meios para que seja atingido. E também não tenho dúvidas de que, acima de tudo, há que respeitar a Mãe-Natureza e, claro, o bem comum. Doa a quem doer!

F. Gonçalves - setembro de 2017

(Reflexão a continuar, proximamente…)