III - NO RESCALDO DOS INCÊNDIOS

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Uma reflexão despretensiosa, mas, talvez, pertinente…

(Antes de ler o que agora se segue, convém visitar, neste site, dois artigos anteriores, publicados, respetivamente, a 30 de junho e a 03 de agosto).

2. Memórias de infância que ainda interpelam o presente!

Curiosamente, quanto a incêndios, as minhas memórias de infância não conseguem chegar a propriedades agrícolas ou a áreas florestais ardidas. Consigo, apenas e só, recuperar da penumbra das minhas recordações, as notícias sobre duas igrejas que arderam - a de Gaula e a do Faial -, se não erro, por ocasião de Festas religiosas, deixando grande consternação entre os fiéis e muitos “porquês?” em muito boa gente. Por isso, sou levado a concluir que esta eventual “falha de memória” indicia que não havia incêndios como os de agora, nem tão numerosos nem tão desastrosos…
E, porquê? Vou deixar, por agora, esta pergunta no ar e vou deixar, também, sem comentários, uma notícia que há dias ouvi na rádio, enquanto conduzia, que as despesas em milhões com a prevenção custam cerca de dez vezes menos do que as despesas que há que enfrentar na sequência de catástrofes…, as quais ainda deixam um cortejo imenso de sofrimento e destruição, impossível de avaliar e ultrapassar com os cifrões!... Verdade?! Não sou economista para me pronunciar sobre contas, mas possuo discernimento capaz de perceber e aceitar a segunda parte da afirmação.
Mas, voltando às memorias, a verdade é que, cada vez que me vejo confrontado com desgraças “naturais”, como as da Madeira, em 2010, 2013 e 2016; e, no Continente, em 2017, não consigo esquecer a manhã do dia 3 de novembro de 1956. Era eu uma criança, mas as lembranças ainda estão vivas, pelo que posso referir-me, com algum realismo ao que vi, ouvi, vivi e sofri… Por volta das 10,30 hs, uma tromba de água abatera-se, supostamente entre o Santo da Serra e a Portela, e, escorregando daí para baixo, inundou violentamente Santa Cruz (a minha freguesia), Água de Pena, Machico e Porto da Cruz, deixando, sobretudo junto aos ribeiros e ribeiras, destruídas muitas estradas, pontes e algumas casas; terrenos de cultivo completamente arrasados; animais arrastados para o mar; e… três mortos e vários feridos, em Machico. Creio que tudo isto terá sido noticiado, nos meios de comunicação da nossa terra.
Agora, do mais fundo dessas recordações infantis, ainda me voltam aos ouvidos (de modo virtual, mas não menos intenso…), o ribombar pavoroso do trovão, que precedeu a chuvada torrencial, o rumor ensurdecedor das águas tumultuosas que arrastavam pedregulhos enormes, que iam derrubando tudo o que encontravam ao longo do percurso, descansando apenas lá no fundo das gargantas apertadas de ribeiros e ribeiras, obrigando-as a alargarem-se para acamarem o entulho, feito de pedras, árvores e outros objetos, arrastados na voragem. Depois, passada a tormenta e estancado o enorme mar de água na baixa de Santa Cruz (refiro-me ao que os meus olhos incrédulos de criança observaram, após a tormenta…), só havia a nojenta lama, que tinha ido pela igreja dentro, que tinha invadido quintais, habitações e lojas de comércio, e que havia emporcalhado jardins, ruas, passeios e caminhos da minha querida vila (hoje, cidade!). Um caos!


Agora, à distância de mais de 60 anos, não consigo aceitar que, nesse dia, a Mãe-Natureza tenha querido fazer alguma justiça. Mas, servindo-me da ideia que a Margarida nos deixou naquela tarde de 19 de junho, no Auditório da Escola da APEL, ela, a Natureza, se calhar, quer “dar-nos um toque”, tentando acordar-nos para as nossas prioridades e responsabilidades (cf. “No rescaldo dos incêndios”, nosso site do dia 30/06/2017). Isto, claro, sem querer afirmar que não haja desgraças em que a mão (ou a maldade) humana não conta, pelo menos de modo visível e/ou propositado! Assim o quero crer! Mas, sabe-se lá?!...
No entanto, que susto apanhei eu nesse dia 3 de novembro de 1956, nas poucas horas de calamidade, onde cheguei a pensar (e o resto da família, também), que o meu pai tinha desaparecido, supostamente arrastado nas águas turbulentas do córrego, que corre perto (mas suficientemente longe) da que era, então, a minha casa. Ribeiro esse, quase sempre muito pacato, sem água, e que, só quando chovia muito, é que se declarava presente… Mas, nas poucas horas dessa triste manhã, ele quis dar um ar da sua (des)graça, lá desde o alto da Serra à Ponte Nova, aquela que fica mesmo ao pé do Tribunal, que era sede (ainda é?!) da Comarca de Santa Cruz.
Mas, graças a Deus (já Lhe agradeci, nessa altura, com a fé que tinha bebido ao colo da mãe e sobre os joelhos do pai, sem precisar, ainda, do rico suplemento de educação e formação que, mais tarde, comecei a receber no Colégio Missionário do Funchal, para onde entrei dois anos mais tarde, em 1958, e que, continuei a aprofundar e a fortalecer nos anos seguintes, como acontece ainda hoje na nova família que adotei e que me adotou!...), mas, graças a Deus, dizia, o meu pai voltou a casa, são e salvo, “cramando”, apenas, em voz bem embargada e com palavras que ainda recordo: «Lá se foi a nossa “Laja”!» (Era o nome que atribuíamos a uma propriedade, toda ela cultivada a cana de açucar, que desafiava e fortalecia não só os dentes dos mais novos, como eu, que os tinham sadios, direitos e fortes, como também os dos adultos, que ainda não os tinham estragados! E “Laja”, porquê? Porque aquela propriedade tinha sido arrancada a pulso ao ribeiro, com a construção de um muro de pedras, supostamente resistente, na margem direita, sobre o vasto lajedo, em cima do qual se jogaram muitos cestos de terra, carregados aos ombros do meu pai e de outros homens que vinham ganhar o pão de cada dia, “a seco ou a comer”, que era assim que, nessa altura, se contratavam trabalhadores.
Aí, nesse dia, o ribeiro (ou terá sido a “Natureza”?!...), quis reivindicar ao meu pai aquele bocado de “território”, que originariamente lhe pertencia, a “Laja” do meu pai, a nossa “Laja”… E, porque também era do meu pai e sentida como “nossa”, verdade seja dita, não ficou muito tempo nessa triste situação, voltando a ser terra, a ser “poio” de canas, para delícia dos mais novos e sustento da família, que era para esse fim que a cana era cultivada, apanhada e levada ao Engenho do Hinton, no Funchal, (hoje, dele, só resta uma alta chaminé), onde o meu pai também trabalhava na época da “moenda”, para garantir mais uns tostões para sustentar uma família, relativamente numerosa.
Assim, entre “teimosias” de humanos em luta com as “reivindicações” da Natureza, a nossa gente, umas vezes, ganha, outras vezes, perde, ficando sempre o alerta de que “com a natureza, não se brinca!”. Só que as “brincadeiras” de antigamente, eram bastante inocentes, se as compararmos com os “jogos”, quantas vezes interesseiros, se não mesmo perversos, do presente.

F. Gonçalves - agosto de 2017
(Reflexão a continuar, proximamente…)